Vânia Penha-Lopes

Oct 9, 20202 min

O DEBATE ENTRE VICE-PRESIDENTES EM 2020 É A CARA DOS EUA

Anteontem, 7 de outubro de 2020, grande parte da população dos EUA ficou presa à TV assistindo ao debate entre Mike Pence, o atual vice-presidente, e Kamala Harris, a candidata à vice-presidência pelo Partido Democrata. O debate entra para a história como a primeira vez que uma mulher negra e interétnica tem a clara chance de se tornar presidente, dada a obrigação, prevista na Constituição dos EUA, de vice-presidentes assumirem o posto de chefia caso os presidentes necessitem se ausentar por qualquer motivo.

A senadora Kamala Harris, natural da Califórnia, é afro-indiana, filha que é de mãe indiana e pai jamaicano, os quais se conheceram na pós-graduação nos EUA, se apaixonaram, se casaram e tiveram duas filhas. Li ontem na coluna da Sabrina Tavernise no New York Times que, após o divórcio, a mãe de Kamala resolveu criar as filhas como negras, pois sabia que era assim que a sociedade as veria. E ela estava certa. Kamala nasceu em 1964, quando o casamento interracial ainda era proibido em mais de 15 estados americanos. A lei dizia que filho (e neto, bisneto e trineto) de negro, negro é (lei da hipo-ancestralidade). Embora a Suprema Corte tenha decidido em 1967 que escolher com quem se casar independente da raça é um direito constitucional ao dar ganho de causa ao tão poeticamente chamado casal Loving contra o estado de Virgínia, até hoje ainda há, tanto entre os brancos quanto entre os negros, quem negue às pessoas “birraciais” o direito de se identificarem como tal. Kamala Harris se identifica com seus dois lados e se auto-intitulou “uma mulher de cor” durante o debate. Seguidamente interrompida pelo vice-presidente Pence, Harris o encarava e proferia, com um sorriso seguro: “Senhor vice-presidente, eu estou falando. Estou falando, ok?” Findo o debate, comentaristas notaram que qualquer pessoa que já teve contato com uma mãe negra confrontou a expressão de Kamala Harris ao se dirigir ao vice-presidente.

Kamala Harris passa uma imagem de auto-confiança, inteligência e simpatia. Ela fala bem – com frases completas e que fazem sentido, uma raridade hoje em dia. Uma versão feminina do Obama? De jeito nenhum; Kamala Harris é, como se diz em inglês, “sua própria pessoa” (her own person). Ainda assim, não posso deixar de sublinhar que a sua candidatura à vice-presidência ocorre após as duas presidências de Barack Obama, que foram erroneamente apontadas como prova de que os EUA eram “pós-raciais” para depois serem seguidas de uma presidência que enfatizou a branquitude em detrimento das minorias negras, latinas e islâmicas; conflitos raciais em 2017 e 2020, por exemplo, em muito lembraram os infames ataques a negro(a)s e a branco(a)s simpatizantes 60 anos atrás. Obama é filho de um imigrante queniano e uma branca americana; Harris é filha de imigrantes não-brancos. Embora os brancos continuem a ser a maioria, a abertura das fronteiras em 1965 após 40 anos de restrições e a já mencionada mudança na lei sobre casamentos interraciais resultaram em uma mudança na cor da população dos EUA cada vez mais perceptível. Desse modo, o debate de anteontem é a cara dos EUA atuais.

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