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Writer's pictureVânia Penha-Lopes

"O BRASIL SÓ TEM JEITO SE ACABAR COM O 'JEITINHO'"


Reproduzo abaixo a entrevista que concedi à jornalista Daniela Pinheiro, que foi publicada hoje no site do UOL:


Sexta-feira, 14/10/2022


Vânia Penha-Lopes, professora titular de Sociologia no Bloomfield College, em Nova YorkArquivo Pessoal


'No Brasil, é mais fácil falar de problema de classe, não de raça'


Daniela Pinheiro, do UOL

A carioca Vânia Penha-Lopes é professora titular de Sociologia no Bloomfield College, em Nova York — onde um aluno desembolsa cerca de 180 mil reais por ano para concluir a graduação. Autora de dois livros sobre ações afirmativas no Brasil, especialista em temas ligados ao racismo e à religião, ela — que é bisneta de escravizados — acabou de publicar nos Estados Unidos "The Presidential Elections of Trump and Bolsonaro, Whiteness, and the Nation" ("As Eleições Presidenciais de Trump e Bolsonaro, Branquitude e Nação", ainda sem tradução para o português).

Em mais de 200 páginas, Penha-Lopes traça um arrazoado sobre como a ideia de superioridade moral da raça branca é intrínseca aos dois países, a dinâmica dessa divisão étnica racial em ambas sociedades (e por que nenhuma delas quer, de fato, mudar isso) e como as eleições dos dois presidentes foram consequência direta de um processo histórico poucas vezes antes interrompido. Na segunda-feira (10), conversei com Penha-Lopes por quase uma hora sobre racismo, eleições, cotas, lugar de fala e mais. A conversa foi condensada e editada para melhor compreensão.


Daniela Pinheiro: Por que o racismo não é um tema nas eleições presidenciais brasileiras?

Vânia Penha-Lopes: O Brasil já nasceu com desigualdade racial. Isso nunca mudou. A escravidão no Brasil foi muito mais longa e abrangente do que nos Estados Unidos. A maioria dos escravos africanos foi para o Brasil. E é por isso que somos 56% de negros lá e apenas 12% nos Estados Unidos. Todos os movimentos, mesmo os mais revolucionários, como a Inconfidência mineira, nunca tentaram mudar isso. O que eles queriam era independência de Portugal para livre comércio, mas queriam que os escravos -- a maioria negra -- fossem mantidos. Vem a abolição da escravatura e também não há qualquer apoio para os ex-escravos. Na Proclamação da República fazem uma Constituição que não dá poder algum para não-brancos. A história do Brasil é uma história de exclusão. No segundo debate, a Simone Tebet, por exemplo, até falou duas vezes que a mulher negra é a que ganha menos no Brasil e todo mundo ignorou. Não é um tema.


Por quê?

VPL: Incomoda aos brasileiros falar sobre racismo. Eu cresci na ditadura, quando nem se ousava discutir isso. Hoje é mais aberto, mas mesmo assim é um não-assunto público, sendo que é presente o tempo todo no privado. Preste atenção em como é fácil para um brasileiro dizer "volta para a senzala, macaco!". Isso acontece em muito poucos lugares do mundo. Outro dia li que um cara estava numa manifestação e ouviu: "vai gritar Lula-lá na África". Também nas eleições, um sujeito com camisa verde-amarela chamou a mesária de "sua negra incompetente". Na minha época, era "neguinha", "crioula". Mudou muito pouco. Essa facilidade de pronunciar essas frases é algo que chama muito a atenção. Porque está sempre na psiquê da pessoa e, quando ela não está se monitorando, escapa.


Como costuma ser sua reação a isso?

VPL: Recentemente, eu estava na piscina de um condomínio no Rio e uma colega estava com esse discurso bem brasileiro do que se chama agora de "racismo daltônico" -- aqui nos Estados Unidos falamos "colorblind racism"--, essa ideia de que o racismo não é mais um problema e que todos temos oportunidades iguais e, com as ações afirmativas ainda por cima, se a pessoa não se deu bem foi porque não se esforçou. Ela falava que cresceu com a empregada, que ela era a sua confidente, que ela contava coisas para ela que não contava para a mãe. Eu disse: "Ah, você tinha uma mucama, então". Bom, torta de climão na piscina. Mas essa fala dela traz conforto a muitas pessoas porque parece que elas não têm questões com esse tema. Só que é uma fala cheia de racismo intrínseco, mesmo na esquerda.


Como assim?

VPL: A pauta do racismo foi naturalmente absorvida pelos partidos progressistas, mas há uma questão. A esquerda subordinou o racismo ao capitalismo, à luta de classes, e isso deu ao tema um caráter secundário também. No momento em que a esquerda acha que se acabar o capitalismo, acaba o racismo, porque é todo mundo igual, os trabalhadores vão se unir para, fortes, derrubarem os patrões sem distinção de cor, raça ou credo, isso praticamente significa que o racismo nunca vai acabar porque o capitalismo está sempre se reinventando. E, se tiver que esperar que ele acabe para isso acabar também, vamos esperar sentados.


Como avalia o que foi feito para combater o racismo no Brasil até hoje? VPL: Os governos Lula e Dilma atenderam algumas demandas dos movimentos negros, mas ainda falta muito a fazer. Foram governos neoliberais, que também favoreceram o capital, os bancos, de comunista não tinham nada. A lei de cotas era uma reivindicação antiga e sabemos a polêmica que foi, até escrevi dois livros sobre isso. O argumento que as universidades públicas eram sustentadas por impostos pagos por todos -- por que dar prioridade para alguns, baseado na cor da pele? Então, há essa ideia de que cotas raciais ficaram subordinadas às cotas sociais. A maioria das pessoas usa esse argumento ainda. Essa mudança de mentalidade seria importante.

Imagem: Arquivo Pessoal


Por que isso acontece?

VPL: No final do segundo debate, perguntaram a um dos candidatos, o Felipe D'Ávila, o que ele achava das cotas e ele não respondia que era contra as cotas raciais, ele só repetia que era a favor das cotas sociais. Como a maioria dos negros é pobre, as cotas sociais beneficiariam mesmo os negros. No entanto, a questão do preconceito é sepultada aí nesse pensamento. O que dizer da professora universitária que é acusada de roubo pela cor da pele? De achar que todas nós, quando estamos de branco, somos babás? Continuamos a ser discriminados. Essa é uma questão de classe, mas sobretudo de raça. E de raça e classe juntas também.


O exemplo simbólico da fala que "o aeroporto virou uma rodoviária" é uma questão de raça ou de classe?

VPL: De ambas. Nos Estados Unidos, as pessoas estão mais confortáveis para discutir questões de raça. Ao contrário do Brasil. Se você perguntar para qualquer norte-americano, até o pobre, o que ele é, ele vai dizer que é classe média. Como aqui é visto como a terra das oportunidades, você não pode ser pobre, mas pode ser negro.

"No Brasil, querem discutir diferença de classe porque há o mito de que não há racismo no Brasil. Aí, o argumento vira que, se a pessoa não tem condição de andar de avião, não entra na piscina do clube, não é porque ela é negra, é porque ela é pobre. E, se ela é pobre, não é culpa dela. A interseção de raça e classe é muito forte no Brasil."

Vânia Penha-Lopes, professora titular de Sociologia no Bloomfield College, em Nova York


Qual é sua opinião sobre o "lugar de fala" como autoridade para se discorrer sobre um tema? Só mulheres podem falar da questão das mulheres? Só trans podem falar da questão dos trans? Só negros podem falar sobre racismo?

VPL: É um tema muito controverso. Acho que existe uma diferença imensa entre apropriação cultural e lugar de fala. Para o racismo -- e todos os outros "ismos" -- serem derrubados, tem que haver colaboração. Se apenas os grupos atacados pelos "ismos" estiverem no debate, nunca vai dar certo. É preciso ter empatia alheia, participação de outros grupos para essas questões se resolverem na sociedade. Isso é diferente de os negros criarem manifestações culturais, serem debochados pelos brancos que, anos depois, se apropriam delas, ganham dinheiro com elas e as legitimam. Um bom exemplo é o Elvis Presley, que se apropriou fortemente das influências negras, nas melodias e até na dança. Depois que ele fez isso, não havia mais espaço para os negros que faziam o mesmo atuar. O rap, o rock'n'roll, há milhares de exemplos assim. Os maiores consumidores hoje são brancos, inclusive com produtores negros.


Há alguma dificuldade em certas conversas hoje porque o "lugar de fala" (ou a falta dele) é sempre evocado.

VPL: Isso é antigo. Há muitos anos, eu dava uma aula sobre disciplina corporal e a maioria dos alunos se dizia favorável a umas palmadas. Um deles veio dizer que quem era contra "não devia ter filhos e por isso não entendia". Eu disse que não me interessava a vida uterina dessa pessoa. Isso é de uma cegueira imensa. Quer dizer que eu sou negra e só posso estudar negros? Eu já estudei judeus em Nova York e se eu quiser estudar famílias vietnamitas, não posso? É muito reducionista. É claro que nós, negros, fomos mais objetos de pesquisa do que sujeitos da pesquisa. É mais comum brancos estudarem a gente do que negros estudarem negros. Mas eu vou estudar quem eu quiser.


Na academia é um bom argumento. E na vida real, quando a conversa tem que ser interrompida quando alguém usa esse argumento?

VPL: As pessoas dão palpite sobre tudo. Quando se usa "lugar de fala", "essa é a minha verdade", não quer dizer que a pessoa esteja certa.

"No caso das discussões sobre racismo, a cor da pele não dá conhecimento necessariamente a ninguém. Se quiser falar sobre o tema, pesquise sobre ele, estude-o." Vânia Penha-Lopes


O que acontece com o debate sobre racismo no Brasil, se Lula ganhar? E se Bolsonaro for reeleito?

VPL: A colunista Ana Cristina Rosa escreveu que os negros vão eleger o Lula. Vamos ver. O que sei é que, se Lula ganhar, é mais difícil que ele abandone essa pauta porque ele tem um histórico de atuação nisso. Se o Bolsonaro ganhar, acho que o tema é enterrado de vez, porque ele já desapareceu nesse governo. E continua a cegueira do "Brasil não é racista", "eu tenho até um amigo negro", mas cada um no seu quadrado. Bolsonaro não tem compromisso com essa causa.


Isso tem solução?

VPL: Há avanços e retrocessos. Enquanto o retrocesso acontece, os movimentos sociais continuam. O Black Lives Matter continuou independente de Trump. A lei do aborto foi revogada, mas há um movimento grande contra. No Brasil, lideranças indígenas, mulheres, negros, grupos identitários estão combatendo o autoritarismo. Do lado de lá, ocorreu o mesmo. Quando Barack Obama estava no poder, os conservadores se organizaram para tentar mudar, algo como "Isso aí já está demais!". São ciclos. Agora que o autoritarismo está em voga, os movimentos podem perder um pouco de força, mas eles não pararam. Por isso que a eleição tanto de Trump quanto de Bolsonaro não são surpresa alguma. São reações a realidades que mudaram a hegemonia dessa organização hierárquica branca. A do Trump, depois de um presidente negro. A de Bolsonaro, depois do empoderamento das classes menos favorecidas, formada, em sua maioria, por negros.


O Brasil tem jeito?

VPL: O Brasil só tem jeito se acabar com o "jeitinho". Acabar com essa coisa de não seguir as leis, de "depois a gente fala sobre isso", e por aí vai. É uma coisa muito arraigada. E não podemos obrigar as pessoas a pensar de uma forma ou de outra, porque isso é ditadura, autoritarismo. Se estou super esperançosa? Não.

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