Publico novamente a crônica abaixo, originalmente intitulada "'Valeu, Zumbi!'", que escrevi em 20 de novembro de 2013 e a Afropress publicou no dia seguinte. Sete anos depois, a data continua sendo contestada, com argumentos que vão desde considerá-la desnecessária porque "só existe a raça humana" a xingar a figura histórica que inspirou a data. Como demonstro abaixo, discordo desses argumentos.
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Na última semana apareceu uma espécie de protesto contra o dia de hoje, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra: este dia seria desnecessário, pois precisaríamos de 365 dias da consciência humana. Como negra, cientista social e pesquisadora de relações raciais, discordo plenamente.
Pra começar, o tal protesto implicitamente sugere que comemorar a consciência negra por um dia é racista, já que somos todos “humanos”. Isso seria muito bonitinho se fosse levado à risca; só que não é.
Calcula-se que dez milhões de africanos migraram à força para as Américas pra trabalhar de graça entre o século XV e o século XIX. A maioria deles—em torno de 4 milhões—foram para o Brasil, o último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888.
A escravidão foi um sistema econômico extremamente eficaz para a colonização das Américas e para enriquecer os traficantes e donos de escravos. A acumulação de riqueza nas costas, nos braços, nas pernas e nas cabeças dos escravos permitiu o florescimento do capitalismo mundialmente. Aos escravos, nada além de suícidio, açoites, terrorismo, humilhação e pobreza.
É errado pensar que os africanos foram escolhidos por terem a pele negra, mas é verdade que uma ideologia de inferioridade foi desenvolvida a posteriori para mantê-los na condição de escravos. Simplesmente falando, os escravos não eram considerados humanos, mas bestas de carga. Desumanizá-los permitiu todas as atrocidades que caracterizaram o regime de escravidão e mais, impedir a sua completa e igual inserção na sociedade uma vez libertos. É fato que, até hoje, seus descendentes são passíveis de tratamento desigual a qualquer momento em qualquer das sociedades outrora escravocratas justamente por serem negros, vide as estatísticas gritantes sobre assassinatos de negros que continuam impunes.
O nome disso é racismo. Os “brancos brasileiros”, ou seja, aqueles que costumavam esconder as fotografias das avós mais escuras mas adoram enaltecer a "cultura brasileira" (i.e., samba, mulatas e feijoada) perante os estrangeiros, eram fãs de dizer que “não existe isso no Brasil”. O interessante é que a maioria dos brasileiros só começou a admitir sua afro-ascendência quando as políticas de ação afirmativa tornaram ser negro vantajoso pela primeira vez na nossa história.
É muito conveniente para alguns ignorar a persistência do racismo, como se trazê-lo à baila o exacerbaria. Pelo contrário, é o silêncio que permite a sua persistência. Portanto, temos mais é que enaltecer Zumbi, João Cândido, Luiz Gama e tantos outros de quem nunca ouvimos falar num dia do ano sim. Quando todos os seres humanos reconhecerem a sua humanidade, talvez então possamos celebrar “365 dias de consciência humana”. Até lá (e eu não sei quando será), isso é conversa pra boi dormir.
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